Mais uma tarde ensolarada no Parque da Bela Vista, em Lisboa, anuncia outro dia de colaboração da meteorologia. Num ambiente de calor de fim de tarde, Tiago Bettencourt inaugurou as sessões no Palco MEO, às 17h00.
“Sou um pessimista por natureza”, confessou o músico entre as canções, para manifestar a sua surpresa com a presença de milhares de festivaleiros que se juntaram para o concerto e para cantar num enorme coro a letra de “Carta, “megahit” dos Toranja, banda que o artista liderou entre 2001 e 2006,. A cumplicidade, de resto, percorreu todo o espetáculo.
Duas horas depois, o Palco MEO recebeu os Ornatos Violeta, concerto igualmente vincado pela grande legião de fãs que vibrou entusiasticamente com as canções do segundo álbum dos portuenses, "O Monstro Precisa de Amigos" (1999) – nos últimos anos, o grupo tem-se reunido apenas para concertos especiais. E, como tem resultado, é de se prever que o estatuto de banda de culto continuará.
A adesão praticamente unânime explica que ninguém tenha levado a mal o engano de Manel Cruz em "Dia Mau", um dos primeiros temas da atuação. "Fodi tudo", desculpou-se o vocalista, sem meias palavras. Mas o episódio foi rapidamente esquecido: a canção despertou o primeiro grande momento de euforia coletiva que acabaria por marcar o tom do concerto, graças a hinos como "Ouvi Dizer", "Capitão Romance" ou "Chaga".
Sem dispensar a entrega ao crowdsurf, o carismático mestre de cerimónias saiu de um dos mergulhos no público com mais uma consideração inimitável. "Alguém me apalpou o cu, mas agora não sei quem posso acusar de assédio", confessou.
Mas também não terá tido muito tempo para pensar nisso ao desfilar por um conjunto de canções que compensou em peso emocional a completa falta de surpresas no alinhamento. Nem mesmo "Há-De Encarnar" e "Pára-me Agora", temas não incluídos no "Monstro", foram particularmente inesperados. Canções novas? "Já equacionámos, já estivemos no recreio a brincar com umas coisas", contou a banda em entrevista ao SAPO Mag. Enquanto não chegam, aproveitemos mais um espetáculo que se pode dar ao luxo de gastar um trunfo como "Coisas" (tremenda canção, ontem e hoje) logo na abertura.
Se tudo ia bem com o pop/rock lusitano, melhor ainda corria com a eletrónica no Palco Colina, onde Moullinex batia um qualquer recorde de preenchimento do espaço: pouco antes de tocar, parecia que nenhuma viva alma passaria por lá; cinco minutos depois, uma mancha humana sacudia-se entusiasticamente ao som de uma entrada, literalmente, a bombar. Luís Clara Gomes, mentor do projeto e um dos nomes históricos da eletrónica lusitana, explica: “Perguntaram se por ser às 18h00 o ‘set’ ia ser mais calminho. Acho que já têm a resposta".
No belo concerto, que convida a uma repetição no Coliseu dos Recreios, em Lisboa, no mês de outubro, houve espaço para a parceria com Sara Tavares em “Minina di Céu” - a artista participou como “convidada virtual” -, para um dos lançamentos mais recentes, a bela e atmosférica “Pacifico”, ou para o final reluzente com “Luz”, nascida durante o confinamento, um dos vários temas que convocou a voz de GPU Panic.
Também a protagonizar um dos momentos altos do dia no Palco Colina com um dos grandes concertos desta primeira edição do MEO Kalorama, Peaches teve casa cheia num espetáculo que, como é habitual na canadiana, tanto viveu da celebração como da provocação.
Revisitando muitos clássicos de "The Teaches of Peaches" (2000), o seu segundo álbum e ainda o mais impactante da sua discografia (o concerto surge no contexto dos 20 anos de aniversário), não perdeu tempo a atirar-se não ao crowdsurfing, mas ao crowdwalking. "Não tenham medo", disse ao cantar enquanto se movia sem receio aparente por uma multidão efusiva.
Apresentando-se ao lado de um grupo de dedicados músicos e bailarinas, juntou humor e atrevimento num número de striptease burlesco e despertou uma onda de aplausos ao revelar uma t-shirt com o agradecimento "Thank God for abortion", clara alusão à recente mudança da lei do aborto nos EUA. Acessos punk como estes, de notória costela feminista, tornaram especialmente urgente um espetáculo que, não se desviando muito dos que Peaches já trouxe a palcos portugueses, ganhou outra ressonância num tempo de extremismos como o de anos recentes.
De resto, petardos electroclash como "Set It Off", "Lovertits" e sobretudo "Fuck the Pain Away", num clímax memorável, não acusaram a idade, energia que também vincou os momentos mais ancorados nas guitarras, como as flamejantes "Rock Show" e "Boys Wanna Be Her". Mais para o fim, a ode à vagina (e ao seu direito ao prazer) foi literal, com duas bailarinas a surgirem com cabeças de vulvas, caso alguém ainda não tivesse aprendido bem a lição desta antiga professora tornada musa queer.
Nick Cave, o rei da noite
Eventualmente a maior atração de todo o festival, Nick Cave subiu ao palco com os seus Bad Seeds pontualmente às 21h00 para encontrar uma verdadeira multidão.
Como sempre vestindo o seu sóbrio fato preto, o passeio que decorreu durante mais de duas horas (o espetáculo mais longo do MEO Kalorama) pela carreira de mais de 40 anos do australiano começou em 2004, onde “Abattoir Blues / The Lyre of Orpheus” fornece três das quatro primeiras canções – começando com a energia de “Get Ready for Love” e seguindo com “There She Goes, My Beautiful World”. São temas que já traziam em si uma veia rhythm & blues e com ela terreno propício para os Bad Seeds recorrerem aos serviços de três vozes gospel (Janet Ramus, T Jae Cole e Subrina McCalla).
Quatro anos longe dos palcos explicam o vigor da banda, embora não o facto de os 64 anos de Cave parecerem não existir. Por vezes movimentando-se temerariamente pelas escadas que o levam até ao público, o cantor criou uma ligação física com os fãs – que pareciam não o conseguir largar. “O Children”, por exemplo, surge dedicada a Paula, uma festivaleira da plateia que celebrava o seu aniversário. Não será das coisas mais alegres para um aniversário, mas certamente o que conta é a dedicatória.
Antes de “O Children” foi o momento da estupenda “From Her to Eternity” – faixa-título do álbum de estreia que serve na perfeição para lembrar as origens de Cave: um completo “outsider”, recém-saído das bizarrias distorcidas dos Birthday Party e longe de imaginar que quatro décadas depois teria um público entusiasmado a cantar o refrão desta narrativa trágica, uma longa epopeia de desgraças onde a eternidade, se existe, será passada no Inferno.
Contar histórias dramáticas e violentas foi sempre, claro, o maior dos atributos do poeta Cave. A belíssima “Jubillee Street”, a canção que se seguiu, narra, segundo ele, uma história de amor que “correu muito, muito mal”. Por essa altura, o concerto seguia em modo baladeiro – onde se sucederam duas do último álbum com os Bad Seeds, “Ghosteen”, e uma quase impensável canção romântica – “I Need You” (a única de “Skeleton Tree”, de 2016), onde fica bem salientado que o músico “acredita no amor”.
Mas, voltando ainda ao passado mais longínquo, repescada do segundo álbum (“The Firstborn Is Dead”) há “Tupelo”, eficiente, como tudo o resto, mas já sem a demência dos trovões originais, onde na amaldiçoada terra natal de Elvis Presley “nenhum pássaro poderia voar e nenhum peixe poderia nadar até que o rei nascesse”. Em “Red Right Hand”, de “Let Love in”, o cantor inicia mais um dos seus temerários voos sobre a plateia, que o segura pelas pernas enquanto o cantor mal se equilibra.
De “Tender Prey”, um dos seus melhores álbuns, aparece reconstruída e irreconhecível o longo mantra distorcido de “The Mercy Seat”, onde decorria mais uma das catástrofes “cavenianas” (a história de um condenado à cadeira elétrica), enquanto “City of Refugee” funciona sempre a partir do seu refrão simples, mas de alto poder evocativo onde soa o aviso de que é “melhor correr para a cidade do refúgio”.
Para o encore mais uma balada ao piano, “Into My Arms”. Depois de “Vortex” e “The Ghosteen Speaks”, “The Weeping Song”, ao contrário da brincadeira de Cave, deixou um público muito longe de chorar. A não ser que seja pelo seu breve regresso.
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