No Largo da Estação de Campanhã, no Porto, todos se lembram de José Barreto.
Taxista durante mais de três décadas, José Barreto tornou-se conhecido entre aqueles que chamavam um táxi pelos poemas originais que declamava a quem viajava consigo.
“Ele perdia-se à conversa com clientes. Parava à porta para os deixar, e eles ficavam pregados a ouvi-lo declamar”, recordou Álvaro Fonseca, taxista há 18 anos.
Mas não era só dentro do táxi nº 561, número que todos mantêm na ponta da língua, que Barreto fazia ouvir a sua poesia.
Na praça, todos têm algo a dizer, e vão ao encontro da mesma ideia: a poesia fazia parte dos dias de quem com ele privou, ou porque pedia opiniões sobre um novo poema, ou porque não conseguia manter uma conversa sem declamar.
“Quando ele jantava em minha casa, tinha sempre de declamar e aprumava ali umas palavras mais caras”, relatou, entre risos, Álvaro, recordando como o taxista declamava “uns 50 poemas de cor”.
Na casa onde morava sozinho, em Campanhã, eram os poemas que lhe faziam companhia à noite.
“Ele tinha televisão, mas estava sempre desligada e eu perguntava-lhe ‘Ó Barreto, tu chegas a casa e falas com quem?’ e ele respondia ‘Não falo com ninguém, falo com os meus papéis’”, partilhou Alberto Sequeira, seu colega durante sete anos.
Barreto foi atropelado e hospitalizado de urgência a 25 de novembro de 2021. Não resistiu aos ferimentos e faleceu no último dia desse ano.
Sofia Barreto, filha do taxista, está a tentar realizar um dos desejos que o pai, por “inseguranças”, deixou por cumprir: publicar um livro.
Sofia tinha como meta lançar o livro a 31 de dezembro, assinalando o aniversario da morte do pai, mas encontrou na língua portuguesa um entrave. Sozinha não ia conseguir editar o livro por estar emigrada desde nova na Suíça.
Arrumar os pertences do pai e encontrar os seus poemas espalhados pela casa ajudaram Sofia a fazer o luto.
“Procurar os poemas dele ajudou-me a lidar com a situação, mas também foi doloroso porque ouvia a voz do meu pai a declamá-los (…). Esta procura aproximou-me dele como nunca”, contou.
Sabia que encontraria muitos poemas, até porque “tudo para ele era poesia”, mas nunca imaginou que conseguisse juntar “mais de 300”.
“Quando ele se inspirava, pegava numa caneta e escrevia no que estivesse mais à mão”, justificou.
Encontrou versos escritos em guardanapos, em papéis usados como toalha de mesa, em talões de compras, em cartões de parques de estacionamento, em cadernos, em folhas de jornal.
“Saía o que lhe vinha na alma, e ali ficava no papel”, esclareceu.
Ainda durante o processo, Sofia recorda ter encontrado num jornal um poema do pai que a marcou: “Quando eu morrer/ Será com toda pena minha/ Mas voltarei a nascer/ Sequoia ou erva daninha".
“A minha missão a partir desse momento foi fazer com que ele renascesse como sequoia e cumprir aquilo que ele queria”, assegurou.
José Barreto encontrava em Pessoa, Agostinho da Silva, Baudelaire e Camões algumas das suas inspirações e escrevia, sobretudo, “sobre si e sobre o que desejaria ter feito diferente, sobre arrependimento, sobre a sua mãe, sobre as filhas e sobre a morte”, elucidou Sofia.
“O meu pai era feliz no táxi, quando declamava os seus poemas, mas fora do táxi, dentro das suas paredes, era uma pessoa infeliz”, observou, sublinhando que não era difícil compreender porque fazia tanta questão em declamar os seus poemas durante o serviço.
“Era apaixonado pelas palavras, pela conversa, (…) pelo diálogo e pela ligação com as pessoas. Acho que era isso que o mantinha feliz dentro do táxi”, acrescentou.
Depois de muito batalhar, Sofia encontrou uma editora para publicar o livro: vai ficar a cargo da Gugol Livreiros e acontecerá entre a primavera e o verão deste ano, deixando “legado” de José Barreto “para a eternidade”.
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