20 anos depois, Portugal ao Vivo outra vez. No primeiro de dois dias de festival, com o revivalismo como mote, o Estádio do Restelo recebeu a nata da nova geração da música nacional. De Pedro Abrunhosa a Miguel Araújo, todos deram espetáculos dignos do seu gabarito, mas as bancadas despidas e a imensidão de relva desocupada fizeram com que tudo soubesse sempre pela metade.
A organização aponta para 8.000 pessoas em frente ao palco. Um número de fazer inveja a muitos artistas, mas notoriamente parco para um festival de estádio. O posicionamento do palco - com a preocupação de não danificar a relva - também não ajudou a aconchegar o cenário. Razões há muitas. Preços elevados, não muito forte acessibilidade ou a facilidade com que hoje em dia nos cruzamos com qualquer uma das bandas do cartaz de ontem.
Taco a taco com Deolinda e The Gift, Pedro Abrunhosa foi o rei da noite. Sem pudores, juntou os seus melhores temas - com idade suficiente para lhes podermos chamar 'clássicos' - e apimentou-os com repetidos apelos ao público e muitas achas para a crítica à classe política. A pontaria foi feita à "corrupção, dinheiro mal gasto e PPP's" e ao "sindicato dos palhaços", aludindo, sem meias-palavras, ao episódio entre Miguel Sousa Tavares e o Presidente da República, com "Não posso mais" e "Talvez foder" como fundo. "Temos de usar as palavras como armas", alertou. Numa incursão pouco comum, chegou a chamar todos os fotógrafos para cima do palco, sem qualquer restrição.
Experimentou com o público coreografias bizarras (como mexer as mãos da forma mais aleatória possível) para fazer frente ao vento frio que, entre a uma e as duas da manhã, já não dava tréguas, mas também soube acalmar os ânimos e criar um clima romântico com "Ilumina-me", "Se fosse um dia o teu olhar" ou "Eu não sei quem te perdeu". Entre o bom groove e as canções de isqueiro, ficou a faltar "Tudo o que eu te dou", apesar de umas boas dezenas ainda a terem pedido quando o concerto acabou.
Os Deolinda tinham sido os primeiros a tocar depois de o sol se pôr, com a lua cheia atrás do palco a dar outro brilho às canções. Ana Bacalhau, aguerrida e tímida nos momentos certos, apresentou-se mais jovem do que o habitual e foi igualmente convincente ora a ranger os dentes, ora a morder o lábio, ora a sorrir timidamente. Não há dúvida que são uns dos maiores embaixadores da portugalidade e para o provar levaram ao Restelo "Fon Fon Fon", "Fado Toninho", "Movimento Perpétuo Associativo" ou "Não tenho mais razões". Ficámos com pena de não ter ouvido mais do novo "Mundo Pequenino", para além de "Fiscal do Fado", "Seja Agora" e "Musiquinha" (a última), mas o tempo passa a correr e não houve oportunidade para mais.
Já devidamente resignados com o envolvimento do palco e decididos a deixar-nos de lamentações, focamo-nos na música e aproveitamos o momento. The Gift jogaram pelo seguro e deram uma boa ajuda. Espremeram o melhor dos últimos três álbuns e puseram toda a gente a cantar "Driving You Slow", "Fácil de entender", "Primavera", "OK! Do you want something simple". Para além disso, foram os mais ousados no jogo de luzes, como habitual, e acrescentaram um colorido interessante ao estádio. Como os sorrisos e a dinâmica de Sónia Tavares. As letras em inglês são "cantaroladas", mas nas portuguesas dá-se um uníssono comovente.
É com uma boa dose de energia e muita experiência nestas andanças que conseguem espevitar a plateia. Um dos melhores momentos chegou quando Nuno Gonçalves se juntou a Sónia Tavares para cantar "The Singles", com toda a vivacidade e uma química rara.
Todos os concertos começaram com uma pontualidade pouco portuguesa. Exactamente às 19 horas, subiu ao palco Miguel Araújo, com, previsivelmente, pouquíssima gente a assistir. O final de tarde amigável, o verde claro da relva, os símbolos da nossa história na paisagem e a suavidade das músicas proporcionaram, ainda assim, um momento bem agradável. Contagiou muitas famílias com a sua boa disposição e, adaptando-se ao espaço, acrescentou aos seus temas o som de um trompete e um saxofone. Entre "Autopsicodiagnose" e "Reader's Digest" ainda vimos um pequeno comboio com um senhor vendedor de gelados a fazer de maquinista. "Os Maridos das outras" provocou mais estragos que qualquer uma das outras, e é uma pena que a maior parte dos fãs de Miguel Araújo esteja a passar ao lado de outras músicas e letras de igual ou maior valor.
Wraygunn, perante uma plateia ligeiramente mais composta, tinham uma missão mais difícil. É que este público, com uma média de idades mais ou menos na casa dos 40 e tal anos (com filhos que já andam a correr pelo relvado) - à espera para ouvir Deolinda, por exemplo -, não está propriamente familiarizado com o rock n' roll alternativo dos anos '90 e 2000. Mas ninguém fez má figura: Paulo Furtado, Raquel Ralha, Selma Uamusse e companhia foram conquistanto a pouco e pouco a pequena multidão e fizeram-se valer muito do novo álbum, com "Don't You Wanna Dance", Track you Down" e "Kerosene Honey". Também chegaram alguns temas mais rasgados, mas foi sempre tudo morninho. Para a última música, "All Night long", os Wraygunn convidaram o guitarrista dos Xutos & Pontapés, Zé Pedro: houve tempo para uma espécie de battle de guitarras e para Paulo Furtado descer até ao pé das grades, como de costume, mas desta vez para entrevistar algumas pessoas desprevenidas sobre se eram amadas ou precisvam de amor. Não dava para muito mais e eles deram o seu melhor.
Apesar de a ideia do festival ser juntar nomes consgrados de gerações diferentes, é difícil não olhar para o dia de ontem como aquecimento. Para hoje - quer pelo peso de nomes como Madredeus e Resistência, que não é todos os dias que temos oportunidade de ver, quer pelo rock de massas - esperamos que a moldura humana seja muito, muito mais alargada. É que, caso contrário, não faz sentido falar em concerto de Estádio (no seu verdadeiro sentido).
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