A certa altura de “Via Ápia”, rua localizada na favela da Rocinha, a maior do mundo, um dos protagonistas dá conta do intenso movimento de um local repleto de vida a qualquer hora do dia e da noite - depois de se ter surpreendido com um barbeiro em plena atividade a meio da madrugada.
“Era muito doido como aquela rua ficava ligada sempre no 220 (volts), qualquer hora do dia ou da noite. É lógico que, devido ao horário, tinha vários doidões na pista. Os bêbados de sempre, os pancadas atrás da próxima linha, mas não era só isso. Muita gente chegava ou saía pro trabalho, outros faziam um lanche ou só trocavam uma ideia com os amigos. Uma família com duas crianças aguardava dois cachorros-quentes. Três horas da manhã. Aquilo era a Rocinha, um morro que não parava nunca”.
Geovani Martins preservou o calão do morro a ponto de uma ficha com “traduções” acompanhar a narrativa - que se centra em cinco personagens que perambulam pelas mais diversas vicissitudes da vida no local. A pobreza, embora não a miséria, marca as suas trajetórias, ligadas ao apelo da “maconha”, as dificuldades no trabalho, os sonhos de uma vida melhor, as amizades e as idas à praia (de forma surpreendente, a sexualidade está ausente) enquanto toda a vida se prepara para ficar suspensa com a invasão do morro pelas Unidades de Polícia Pacificadoras (UPPs) - ocorrida em 2011.
Neste sentido, o livro tem especial importância por mostrar de forma realista uma vida fortemente marcada por um sentido comunitário, pela liberdade e pela espontaneidade de um universo cuja população pertence esmagadoramente à classe dos trabalhadores pobres. “Via Ápia” acrescenta assim os elementos ausentes de uma retrato normalmente alicerçado no sensacionalismo dos “media”, que adoram explorar a violência (que também existe, obviamente).
Através da sua personagem Biel, Martins dá o seu próprio contributo para evitar uma visão idealizada. “... nunca acreditou em ninguém que diz ter orgulho de morar no morro. Na sua visão, todo mundo inventa essa história pra não precisar admitir que não tem condição para viver num lugar melhor. (...) Biel acha acha graça que nessa hora parece que ninguém se lembra da falta d'água , da vala aberta, da polícia que derruba a porta, do lixo que às vezes espera uma semana pela boa vontade da Comlurb”.
O problema das Unidades Pacificadoras, por outro lado, é mais complexo. À partida, essas iniciativas seriam uma tentativa da parte do Estado em, finalmente, marcar presença em comunidades onde o vazio de poder descamba para uma forma “medieval” de exercício do mesmo - onde grupos de traficantes fortemente armados estabelecem, através de guerras selváticas, “a lei” dentro da favela. Obras como “Cidade de Deus” (tanto o livro como o filme) abordam exatamente isso - a violência que irrompe solta na tentativa de ocupação destes espaços.
No seu livro, Geovani Martins fala de uma Rocinha já “pacificada” - neste caso pelo narcotraficante Nem, que assumira o comando do morro após várias guerras de facções. Ele acabaria preso nesta mesma operação, em 2011. Por outro lado, as UPPs nunca conseguiram conquistar a simpatia da população - largamente acusadas de truculência, corrupção e abuso de poder.
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