“Pele de Luz” começa com Anifa a contar a Isa a forma como sobreviveu a um rapto e desenrola-se com a rotina de ambas as irmãs albinas no centro da capital do país. O olhar é de André Guiomar, realizador português que viveu quatro anos em Moçambique e não ficou indiferente às questões relacionadas com o albinismo.
“Quando se quer enriquecer e se vai a um curandeiro, é pedido cabelos, unhas e até ossos de albinos”, explica ao SAPO André Guiomar, aquando da sua presença em Lisboa para a apresentação do filme “Pele de Luz” no Doclisboa'18, no qual venceu na semana passada o Prémio do Júri da Competição Portuguesa.
“Há muitos mitos na sociedade moçambicana, diz-se que os albinos não devem comer peixe porque podem apodrecer por dentro, por exemplo. Em muitos dialectos, a tradução directa de albino é fantasma.”
Por causa destes mitos e pela procura de albinos para feitiçaria, as ofensas corporais, raptos e até assassinatos já não são novidade. Para chamar a atenção a estes crimes, desde 2015, que a ONU marca o dia 13 de junho como o Dia Internacional de Consciencialização sobre o Albinismo sob o lema “brilhando para o mundo”.
Além disto, em Moçambique, no mesmo ano, foi criada uma lei de protecção às pessoas com albinismo e um quadro legal mais específico para punir estes crimes. Contudo, ainda no início deste ano, a Amnistia Internacional dava conta de 30 mil albinos vítimas de descriminação e com risco de vida. Segundo a mesma notícia, estima-se que tenham morrido, no ano passado, 13 pessoas com albinismo vítimas de perseguição.
Ainda em 2017, a perita independente das Nações Unidas para os direitos humanos das pessoas com albinismo, Ikponwosa Ero, alertou o Conselho de Direitos Humanos da ONU sobre a situação em Moçambique. “Muitas das vítimas são crianças. Em setembro de 2017, segundo a polícia, um rapaz de 17 anos com albinismo foi morto na província de Tete, tendo-lhe sido retirado o cérebro. Quatro meses antes, a polícia descobriu a tentativa de dois pais de vender o filho com albinismo na mesma província.”, segundo o Relatório Mundial de 2017 da Human Rights Watch.
Este tipo de crime e preconceito está mais presente nas zonas centro e norte de Moçambique, mas é visível também na capital: “Na rua, há pessoas que se afastam porque têm medo”, contextualiza o realizador português para explicar que “é muito complicado para quem nasce com esta condição". "Já é difícil ser diferente e com estes mitos ainda mais complicado é sentir-se igual aos outros, é uma carga muito difícil de lidar.”
André foi pela primeira vez a Moçambique para gravar uma série televisiva sobre a guerra e paz no país durante alguns meses. “Acabei por ficar quatro anos e entretanto fui editor de uma longa-metragem e director de fotografia de uma curta. Decidi, antes de regressar a Portugal, nos últimos dez dias, gravar este documentário, em co-produção com a Promarte e Real Ficção."
“Em Portugal, este assunto é uma novidade ainda. Muita gente reagiu ao trailer com surpresa. Em Moçambique, toda a gente conhece o tema.” E foi mesmo o tema que foi ter com ele através do Humans of Mozambique um projeto inspirado no Humans of New York, que conta um pouco da história de uma pessoa através do seu retrato.
Foi através deste projeto que se deparou com o albinismo. E foi através do assistente de realização com quem trabalhou nos últimos anos que André conheceu Anifa. “Achava que ia fazer um filme sobre a Anifa, mas, no meio dos dias de filmagem, o filme acabou por se tornar muito sobre a irmã mais nova, a Isa, que também é albina e está a passar por uma fase complicada.”
“A mais velha sempre encarou as diferenças que tem em relação à sociedade de uma forma muito saudável. Para ela, ser diferente é positivo. É ser melhor e o centro das atenções. Isso fez com que a Isa perdesse um pouco o espaço em casa e nota-se que está – com doze anos é normal – um pouco às escuras de saber onde se agarrar".
Entre a extroversão da Anifa e a introversão de Isa, o filme, com uma fotografia excecional, acaba por decorrer entre três pilares: "a religião, educação escolar e o apoio familiar".
Esta curta-metragem pode vir a ser parte de um projeto maior no futuro de André Guiomar, que tenciona fazer uma longa-metragem com seis histórias, e que resumem a forma como ele olha para Moçambique. No entanto, achou que "esta história era a mais urgente, não necessariamente a mais importante, mas a mais urgente".
Em Portugal, "Pele de Luz" conquistou a atenção dos telespectadores e da imprensa. André está de volta a Moçambique – para gravar na Zambézia sobre o crescimento da soja na agricultura nacional –, e o filme estreia-se hoje no Ceará, no Brasil, no Fest Films, pelas 17h30 locais. O documentário ainda regressa a Portugal para os Caminhos do Cinema Português, em Coimbra, a 25 de novembro. Ainda não há data para a estreia em Moçambique mas “é possível que esteja para breve”, antecipa André Guiomar.
Neste triângulo de continentes entre o Atlântico, André tenciona ficar a viver em Portugal e regressar muitas vezes a Moçambique. “Tenho muito para filmar”. As consequências do pós-guerra na educação, a prevalência de HIV e malária na saúde e a relação económica com a China são alguns dos temas que André gostava de desenvolver . Um dos temas já está em pré-produção.
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