Luzes, câmara, tensão... Fora do circuito de Kylie Minogue desde 2009, Portugal teve direito a uma data única da mais recente digressão da australiana, "Tension", que começou no seu país natal e já passou pela Ásia, América do Norte e várias cidades europeias desde fevereiro.

Descontando uma breve atuação no programa "Parabéns" (RTP), de Herman José, em 1996, a voz de "Can't Get You Out of My Head" apenas tinha subido a palco por cá no então Pavilhão Atlântico, num concerto com tanto de memorável (tratou-se de um belo e surpreendente espetáculo pop) como de frustrante (apenas foi visto por pouco mais de cinco mil pessoas).

Essa discreta adesão de público talvez tenha justificado o atraso de um regresso que, como a MEO Arena atestou esta terça-feira, 15 de julho, era aguardado por muitos. Desta vez, Kylie foi recebida por uma sala quase repleta e por espectadores tão entusiastas como os do concerto de há mais de uma década. O que talvez não seja assim tão inesperado: afinal, a artista de 57 anos vive uma das fases mais vibrantes de um percurso pop invulgarmente longo (o primeiro álbum, homónimo, foi editado em 1988), mas no qual não se notam sinais de poeira.

"Tension" (2023) e "Tension II" (2024), discos lançados quase de rajada, dão conta de um período tão prolífico como popular e motivaram uma digressão que, apesar do nome, nem insiste assim tanto nas canções mais recentes. Dos cerca de 30 temas revisitados em Lisboa, só cinco saíram dessa última colheita, já que o alinhamento, dividido em cinco atos e um encore, fez paragens por boa parte dos quase 20 álbuns de Kylie. Entre os esquecidos ficou, curiosamente, um dos mais elogiados (tanto pela crítica musical como pelos fãs) de uma artista que se notabilizou sobretudo pelos singles: "Impossible Princess", aventura pela eletrónica de tempero indie nascida em 1997.

Por outro lado, quem tem uma coleção de singles como a que desfilou pela MEO Arena pode dar-se ao luxo de dispensar pérolas esquecidas de álbuns... ou mesmo muitos outros singles. A cantora deixou de fora "Speakerphone", "Like a Drug", "Your Disco Needs You", "In My Arms", "The One" ou "Kids" (o emblemático dueto com Robbie Williams), todos trunfos da passagem por Lisboa em 2009. Mas dificilmente alguém terá grandes razões de queixa da seleção deste regresso, mesmo que o segundo ato, apesar da explosão de brilho e cor contagiante de "On a Night Like This" e "The Loco-Motion", se tenha mostrado menos robusto. Em compensação, os iniciais e finais foram à prova de bala.

AMOR À PRIMEIRA VISTA

Desde o momento em que entrou em palco, descendo dos céus sentada num trapézio em fundo negro ao som de "Lights Camera Action", à não menos gloriosa despedida, com a borbulhante "Love at First Sight", aí já entre serpentinas, Kylie apresentou um festim orgulhosamente pop mas capaz de abraçar a house e o disco, o electro e o eurodance, pitadas de funk e country.

Kylie Minogue
Kylie Minogue créditos: Ricardo Cabral

Tão espirituosa como confiante, lembrou que uma festa destas não se faz sozinha: tanto agradeceu, mais de uma vez e na língua de Camões, a um público efusivo como a uma equipa igualmente dedicada a irradiar boa disposição ("Incluindo a que não está no palco", sublinhou). Quatro músicos (na guitarra, baixo, bateria e teclados/programações), três coristas e quase uma dezena de bailarinos foram cruciais para que um dos pedaços de entretenimento mais luminosos deste verão resultasse (talvez ainda mais luminoso do que o recém-estreado "Superman", de James Gunn, o que não é dizer pouco).

O aparato visual também marcou pontos, com um orçamento claramente superior ao da cenografia mais modesta (ainda que charmosa) da atuação da australiana no mesmo espaço em 2009. Do fantasioso ao futurista, da vertente raver à mística, conforme o ato, as mudanças nas projeções também se refletiram nas trocas de indumentária de Kylie e dos seus bailarinos. A cantora privilegiou modelos roxo e vermelho, de calças a vestidos ou minissaia, tendo a companhia de robôs ou aventureiros espaciais (entre outras transfigurações que, à distância, nem sempre foram muito percetíveis, mesmo com dois ecrãs laterais).

Público de Kylie Minogue
Público de Kylie Minogue créditos: Ricardo Cabral

"Unplugged" em Lisboa

Se a noite brilhou nos momentos mais vistosos, que incitaram grande parte dos espectadores a abandonar as cadeiras durante estas mais de duas horas enquanto se rendiam à dança, também aqueceu corações quando Kylie se dirigiu para um pequeno palco no terceiro ato, com cerca de cinco metros quadrados e situado em frente ao principal, já no meio do público. No segmento mais intimista, a artista ofereceu a cumplicidade possível num espetáculo desta dimensão: partilhou memórias, acedeu a pedidos de canções dos fãs (alguns com cartazes a destacar os títulos) e atuou a cappella ou apenas com a companhia do guitarrista ou das três coristas.

Antes de "Hold On to Now", Kylie confessou não pensar muito quer no passado quer no futuro, agarrando-se ao presente. Também entoou versos de "Into the Blue" e "Wow", em modo acústico, e até, de forma ainda mais breve, de "Where the Wild Roses Grow", a tremenda e melancólica colaboração gravada com Nick Cave e os seus Bad Seeds nos anos 1990 (e que surpreendeu meio mundo na altura). "Quem vai ser a minha rosa selvagem esta noite?", questionou, entregando uma rosa a um fã pouco depois de ter assinado um velhinho single em vinil de outro (episódio muito aplaudido perto de "The Loco-Motion", no final do segundo ato).

Ainda no formato "unplugged", recuou até aos tempos do álbum "DISCO" (2020) e agradeceu o apoio dos admiradores numa fase conturbada (depois da aproximação country de "Golden", em 2018). "Say Something", em versão despida, convocou vozes em uníssono e telemóveis no ar, com efeito isqueiro, num dos momentos de comunhão mais bonitos.

Kylie Minogue
Kylie Minogue créditos: Ricardo Cabral

Não menos intensa, "Confide in Me", uma das pérolas desta discografia, abriu caminho para a reta final da melhor forma. O arranjo de cordas arrepiante e o cenário soturno instalaram um raro ambiente quase gótico que a infeciosa "Slow" confirmou antes de desmontar: terminaria com um dos crescendos mais potentes da noite, vincado por Kylie a aproximar-se do público das primeiras filas em pose majestática (diva pop, pois claro).

E a partir daí o ritmo não desacelerou, numa daquelas sequências triunfantes: da house à anos 90 de "Edge of Saturday Night" (gravada com The Blessed Madonna e não muito longe do set da DJ e produtora britânica Jodie Harsh, que assegurou a primeira parte com eficácia) às muito esperadas "Tension" e "Can't Get You Out of My Head", a despertarem a euforia expectável.

"All the Lovers" a fechar? Não, faltava "Padam Padam", êxito tão recente como inescapável, disparado antes da acima referida "Love at First Sight". Quantos artistas têm uma das suas canções mais populares de sempre depois de uma carreira bem-sucedida de quase 40 anos? Nem o calor desafiante da sala (a australiana não largou o leque durante alguns temas) impediu que esse marco fosse celebrado com um abraço coletivo, extensível a um regresso que tardou mas não falhou. Não há grande motivo para voltar a esperar mais de uma década, pois não?

Alinhamento do concerto:

ACT I
Lights Camera Action
In Your Eyes
Get Outta My Way
What Do I Have to Do?
Come Into My World
Good As Gone
Spinning Around

ACT II
Taboo
On a Night Like This
last night i dreamt i fell in love
Better the Devil You Know
Shocked
Dancing
The Loco-Motion

ACT III: palco B
Hold On to Now
Into the Blue
Wow (excerto)
Where the Wild Roses Grow (excerto)
Say Something
Supernova / Real Groove / Magic / Where Does the DJ Go?

ACT IV
Confide in Me
Slow
Timebomb
Edge of Saturday Night

ACT V
Tension
Can't Get You Out of My Head
All the Lovers

Encore:
Padam Padam
Love at First Sight